Em 08/05/2019, após anos de decisões antagônicas proferidas pela 1ª e 2ª Turma da Primeira Seção do STJ, ao decidir os embargos de divergência nº 1.318.051-RJ, aquele Sodalício finalmente sufragou a tese de que a responsabilidade administrativa ambiental tem natureza subjetiva[1].
Essa decisão representou forte avanço na jurisprudência do STJ que, a partir de então, passou a conferir aos ilícitos administrativos ambientais, a natureza jurídica que melhor lhe descrevia.
Ao contrário do que possa parecer, contudo, mesmo após a sedimentação desse entendimento, há situações nas quais, por uma conjunção de fatores, o autuado continuar a sofrer as consequências de autos de infração lavrados com base na responsabilização objetiva do suposto infrator das normas ambientais.
É necessário ter cautela, pois há estados onde persistem traços de legislação ambiental que permanece calcada na ultrapassada premissa de que a responsabilidade administrativa ambiental possuía as mesmas características essenciais da responsabilidade civil ambiental.
Exemplo disso é a lei paulista 997, de 31 de maio de 1976, que trata do controle da poluição ambiental naquele estado.
O parágrafo único do artigo 7º deste dispositivo – com redação dada pela Lei 8943/94 – dispõe que: “responderá pela infração quem por qualquer modo a cometer, concorrer para sua prática ou dela se beneficiar”.
A expressão “ou dela se beneficiar” estende indevida e perigosamente, ao sabor da interpretação do agente julgador, a responsabilidade que deveria ser declinada apenas aos transgressores ou infratores da norma de proteção ambiental.
Importante observar que a Lei 8943/94, que deu a redação ao parágrafo único do art. 7º da Lei 776/74, foi editada num período em que era comum a confusão entre os conceitos de poluidor e infrator, aplicando-se às duas figuras, indistintamente, a inteligência do § 1º do art. 14 da Lei 6938/81 o qual, por seu turno, sempre previu a responsabilização objetiva somente do poluidor.
A sedimentação da natureza jurídica da reponsabilidade administrativa ambiental, deixa claro que o elemento subjetivo deve necessariamente ser aferido para identificar o agente infrator, delimitar sua reponsabilidade e mensurar a reprovabilidade de sua conduta.
Nesse sentido, chamam atenção algumas decisões proferidas no STJ, nas quais, a despeito do julgador reconhecer a natureza subjetiva da responsabilidade administrativa ambiental, vê-se obrigado a acolher a responsabilização administrativa de forma objetiva em vista da aplicação analógica da Sumula 280 do STF.
No Estado de São Paulo, meros adquirentes de cana de açúcar colhida após a queima irregular da mesma, têm sido punidos administrativamente como se efetivamente houvessem sido os autores da queima da palha da cana de açúcar, mesmo em casos nos quais a queimada se dá por ato e força de agentes estranhos e não identificados.
Se a queima ocorre por motivos alheios a vontade do produtor, que tenha atuado com a devida cautela, obviamente, este não pode ser responsabilizado pela mesma.
Ora, se o produtor da cana que não foi causador e/ou teve culpa no incêndio, não pode ser autuado, com muito mais razão, é possível enxergar a impropriedade da autuação de mero adquirente da cana queimada.
Ressalte-se, os adquirentes da cana queimada de forma irregular não estão sendo multados pela aquisição deste produto – haja vista que, ao que parece, esse tipo infracional sequer existe na legislação daquele estado – mas efetivamente, pela queima irregular da palha da cana, conduta na qual não tiveram nenhuma participação, mesmo que de forma indireta.
Interpretação excessivamente alargada, e ilegal, diga-se, do conceito de transgressor da norma ambiental, calcada no parágrafo único do art. 7º da Lei 776/74 do Estado de São Paulo.
Invariavelmente tais casos são levados ao STJ que se vê obrigado a, mesmo reconhecendo a natureza subjetiva da responsabilidade administrativa ambiental e o equívoco do tribunal local em aplicar o regime objetivo à multa contestada, julgar prejudicada a análise de tal ilegalidade em vista da aplicação analógica da Súmula 280 do STF:
De fato, a responsabilidade administrativa ambiental, segundo a jurisprudência do STJ, é de natureza subjetiva, ao contrário da responsabilidade civil pelo dano ambiental. Logo, não poderia o Tribunal local aplicar o regime objetivo na hipótese da multa imposta.
Ocorre, contudo, que tal argumento se mostra prejudicado, pois, revendo o julgado, observo que a aplicação da multa imposta à empresa teve como fundamento para sua aplicação a previsão em legislação local, ao interpretar que a agravante se beneficiou do dano ambiental ocorrido, o que permitiu a aplicação de multa por parte da Fazenda Pública. Assim, a imposição da multa se deu com base no conteúdo inserto no parágrafo único do art. 7º da Lei Estadual 997/76, regulamentada pelo Decreto 8.468/76, cuja análise, isoladamente, é obstada em Recurso Especial, por analogia, nos termos da Súmula 280/STF, que assim dispõe: “Por ofensa a direito local não cabe Recurso Especial”. REsp. 1.476.275-SP – julgado em 07.02.2019 . Destaques nossos
A deletéria combinação de uma legislação local ultrapassada, calcada em premissas equivocadas e de julgadores que insistem em aplicar à responsabilização administrativa ambiental as regras da responsabilidade civil ambiental, olvidando a interpretação consolidada pelo STJ, chancelam autuações ilegais direcionadas a terceiros cujas condutas não tocam, sequer de forma indireta o tipo da infração ambiental evidenciada.
Autor:
Gustavo B. Godoy é advogado especializado em Direito Ambiental, membro da Comissão de Direito Ambiental da OAB-ES.
[1] http://www.stj.jus.br/sites/STJ/default/pt_BR/Comunica%C3%A7%C3%A3o/noticias/Not%C3%ADcias/Primeira-Se%C3%A7%C3%A3o-consolida-entendimento-de-que-responsabilidade-administrativa-ambiental-%C3%A9-subjetiva